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Pra não dizer que flores não falam (2 de 5)

A única verdade verdadeira é a verdade vivida.” – (Nietzsche)


Ela era conhecida como a Rainha-da-Noite. Pelos cantos, corredores, umbrais, escadas, na rua. Ela era chamada de Rainha, mas não era tratada assim. Seu nome verdadeiro é Dália.

Quando ela nasceu sua mãe sorriu, a abraçou ali na maca, prometeu que sua vida seria diferente da dela. A criança recém nascida abriu os olhos e a fitou diretamente.

- Que olhos lindos. Tem uma cor doce. Tão pura...Você se chamará Dália, minha pequena, é uma flor linda.

A criança não parava de olhá-la. Nove meses dentro dela e agora ali, em plena contemplação, encontrava o rosto, a voz e o olhar do seu abrigo.

- Minha pequena Dália Vermelha.

Dália... Dália Vermelha é uma flor, o significado é OLHOS ABRASADORES, mas ela nunca soube disso. Ironicamente, Dália ficou conhecida por seu olhar penetrante e inesquecível, ficaria conhecida por outras coisas também, [de]mérito de sua mãe.

Sua mãe era uma apaixonada por botânica, especialmente flores. Nunca disse em que ponto sua vida não deu certo. Nunca falou sobre seu passado. Sobre seus pais. Sobre família. Quando Dália nasceu não pode voltar pra casa com a mãe. Uma amiga ficaria com ela. Seria chamada de tia, seria conhecida como a irmã da mãe. A mãe faria visitas constantes.

- Tia, por que eu não posso morar com minha mãe? – eram as perguntas mais repetidas.

- Oh, meu amor, sua mãe tem uma vida muito corrida e agitada. Trabalha muito. Depois que você nasceu ela me disse que trabalharia dobrado pra poder ter dinheiro o suficiente pra sair do emprego. Te colocar aqui é uma forma dela cuidar de você. Sua mãe te ama muito, Dália.

Dália emprestou a sua mãe uma esperança assim que repousou em seu colo, naquela maternidade. A mãe visitava a filha com muita freqüência, mas não conseguiu a demissão.

Aos 12 anos a “tia” não tinha mais condições de cuidar e manter a menina, mas tentou e insistiu mais um pouco. Aos 13 a “tia” precisou mudar de Estado e não pode levar a Flor. Dália iria morar com a mãe e em seus olhos haviam brasas de ansiedade, felicidade e desejo por conta disso.

Era uma casa grande. Haviam muitas pessoas, a maioria homens. Era uma casa bem cuidada. Havia um certo luxo. Muitos quartos.

- E é aqui que você mora, mãe?

- Sim... – um nervosismo na sua voz. Uma preocupação em como proteger sua filha.

- Parece um Hotel de rico.

- Filha, eu preciso te falar de algumas regras...

Ela a pegou pelo braço e a levou para o quarto. Dália estava deslumbrada com tudo aquilo.

- É sua pequena flor, Margarida? – perguntou com desdém uma das mulheres que descia as escadas.

- Não enche!

Dália não entendia nada, mas estava feliz. Chegaram ao quarto. A mãe passou o trinco.

- Filha, senta aqui. – Dália sentou – A mãe está muito feliz de ter minha mocinha por perto. Pra você ficar comigo terá que obedecer minhas regras e isso para o seu bem e para o meu bem.

- Ta bom, mãe. – aqueles olhos tão puros...

- Esse é o meu quarto e aqui está sua chave. Quando você estiver nessa casa terá de ficar o tempo todo aqui dentro, entendeu? Não poderá sair! Aqui terá tudo o que você precisar: banheiro, frigobar, televisão, escrivaninha para seus estudos. Seu colégio é integral e sou eu quem vai te levar e buscar na escola daqui pra frente. Você precisa estar aqui dentro, desse quarto, todo dia até as 20h. Entendeu???

- Mas porque mãe? Essa casa é gigante, eu quero conhecê-la.

- Não!! Essa casa não é minha, filha. O dono pode mandar você embora.

- Mas você não deixaria isso acontecer, né?

- Você vai precisar obedecer minhas regras.

- Ta bom.

Certas verdades não conseguem permanecer intocáveis por muito tempo, ainda mais quando você a rodeia de perto. Aos 14 Dália entendeu, um pouco, o que era aquilo. Aos 15 fugiu e descobriu que não tinha para onde ir e como se manter. Aos 16 os colegas da escola descobriram onde ela morava e foram cruéis e ela nunca mais voltou para escola. Aos 17 ela foi apresentada pela mãe, na casa grande, como a Rainha-da-Noite, outro nome de flor, mas que prefere a noite ao dia. Aquela foi uma noite onde poetizou suas lágrimas, dizendo ao homem que segurava sua mão que aquilo era orvalho que ela produzia. Aos 18 já não sentia nada, aprendeu a fingir tudo. Aos 19 era a mais procurada na casa. Aos 20 era a mais invejada da casa. Aos 21, olhando do seu quarto a vida das pessoas que transitavam lá embaixo, na rua, longe dali, se perguntou como era mesmo ter uma vida normal. Aos 22 encontrou seu caderno de anotações de quando tinha 17, e voltou a escrever. Aos 23 ela só pensava em como salvar a si e a mãe. Aos 24 descobriu que poucos conversavam com ela, valorizavam ela, se importavam com ela. Descobriu que o mundo é carrasco com gente como ela, da margem, do submundo. Sua mãe era uma puta de luxo e Dália também.

Aos 25 fugiu pela segunda vez. Tentaria reconstruir seu mundo de novo. Teria que aprender sozinha. E agora fazem 5 meses sem ver sua mãe.

“sonho pelos pés” “corpo é apenas casca” “a única verdade verdadeira é a verdade vivida, disse um filósofo, e eu tô lutando pra não ser uma farsa” “gostaria de vender minhas poesias, mas minha alma não vale mais do que meu corpo”

- Menina, eu ouvi você tossindo! Não me obrigue a forçar a porta. Abra essa merda, anda.

A chave girou, a maçaneta girou, a porta abriu e um tapa pode ser ouvido seguido de um soluço seco. Ele a prendeu com sua mão grande.

- Isso, agora a gente vai conversar, Rainha.


No rosto dela, contra a luz da lua, um vergão vermelho aparecia, mostrando pelo menos três dedos marcados.

(continua)
*Ellion Montino
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Leia o primeiro capítulo:

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