“A vida é curta demais para mais
de um sonho.” (P. Leminski)
Dentro daqueles olhos castanhos
claros havia uma faísca que teimava em não apagar. Dentro daquele olhar de
ressaca habitava uma insistência em acreditar numa esperança débil e
melindrosa.
Naquela casa de dois cômodos e um
banheiro, ela habitava. As paredes eram rabiscadas, por ela, com giz de cor avermelhada.
Frases soltas. Palavras que se desprendiam dela e paravam ali, na vertical, na
massa corrida. Assim ela dava voz às
paredes que geralmente só tem ouvidos. Eram coisas do tipo:
“de olhos fechados eu vejo um
mundo melhor.” “Sei do velho que não sabe que existe, mas eu sei e assim lhe
poupei o trabalho de saber.” “hoje prendi a respiração por 5 minutos naquela
banheira velha. Estou ficando boa. Talvez, um dia, não precisarei emergir.” “o
cobrador me deu o troco errado, veio a mais. Preferi fingir que ele o fez de
boa vontade e consegui dormir sem culpa.” “Fazem 5 meses que saí de casa e meu
salário não paga por minhas esperanças.” “eu tinha um sonho e antes dele cair
no papel minha mãe mandou eu o engavetar... engavetei minha mãe e agora meus
sonhos ficam expostos pela casa.”
A relação com a mãe não era boa,
e ela não lembra se algum dia chegou a ser. A última conversa das duas se
resumiu em:
- Mãe, um dia você me verá nas
livrarias. – sorria dizendo isso com o olhar perdido.
- Que papo é esse?
- Vou ser escritora.
- Não sei se foi o senso de humor
ou a idiotice que você herdou do seu pai.
- É sério. Me ajuda a comprar um
notebook? É melhor pra organizar meus textos. Aqueles escritos no caderno podem
rasgar, molhar, enfim, e hoje é tudo digital, você sabe.
- Filha, eu não vou permitir que você
perca seu tempo com algo estúpido. Primeiro que isso não dá dinheiro. Segundo
que o meu dinheiro tem muito mais chance de render no meu bingo e na sena do
que nessa sua besteira. E terceiro, se acostume com sua vidinha, meu amor. Acha mesmo que você tem algum conteúdo? Algo que as pessoas pagarão para ler? Dê
graças a deus que ele caprichou um pouco no seu corpo e nessa sua cara, que
pelo menos dá pro gasto. Ah, fiz uma arrumaçãozinha no seu quarto. Joguei
umas coisas fora. Acho que seu caderno também foi junto. Veja pelo lado bom, o
lixeiros terão o que ler antes de pegar cada lixo, isso se olharem o nosso.
Hahaha...
Depois disso o surto. Iria tentar
a liberdade, não sabia como, mas iria. Foi para o trabalho e numa mensagem de
celular disse que não voltaria para casa naquele dia, que em breve daria notícias. Hoje somam-se cinco meses.
“tenho uma caixinha de música, é
velha, mas toca. Tenho um coração com hematoma, cansado, mas bate.” “sem preço,
sem luxo, sem lixo, sem lixa, sem pressa, com prece.” “sangue frio, coração
quente.” “barriga vazia, delírio, um ronco e dele tiro uma risada fraca.” “do
que é feito o chão em que pisam os pés de um sonhador?” “Qual o meu custo sem
mão de obra?”
Rabiscos vermelhos. Desenhos vermelhos.
Esmalte vermelho. Sua cor preferida. Na lata vazia de leite em pó, outra moeda
cai e faz barulho. Ela sabe que quanto mais pesada à lata, mais leve alguma
coisa fica, ela só não sabe o quê, mas sente...
É noite. Faz frio e não há luz.
No chão, debruçada, ela trabalha no seu novo caderno. A mão treme, um misto de
fome, de frio, de força migalhada.
Alguém bate com força na porta.
Ela pára a escrita e fica imóvel, em silêncio. Prende a respiração, do jeito
como treina todo dia na banheira, para que ninguém note sua presença. Nota que se
esqueceu de apagar a vela. Assopra a chama que ilumina seu caderno. Inala a
fumaça do pavio. Tosse.
- Abra a merda dessa porta. Eu
ouvi você!!!
É voz de homem, do homem que a
procura já tem quatro dias seguidos. Outra tosse mais constante pode ser ouvida
do lado de fora.
“sinto que até meu silêncio me
denuncia.” “pra onde se vai quando se está perdida?”
- ABRA A MERDA DESSA PORTA..!
(continua...)
*Ellion Montino
(continua...)
*Ellion Montino
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