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O 'quase' provisório


Lembro que foi no segundo ano do Ensino Médio. Entrou aquela mulher na sala. Segurava um pacote com muitos papéis. Nunca tínhamos visto ela por ali. Substituiria algum professor naquela aula vaga. Era distinta, simpática e por ser nova por ali chamou a atenção da maioria. Pelo menos, era mais atrativa do que meus desenhos no caderno, fazendo a hora passar mais rápido.

Em pé, diante de todos nós, pediu a palavra. Apresentou-se e explicou o que faria conosco. Distribuiu as folhas. Era um teste vocacional. Deixou claro que os resultados obtidos iriam nos ajudar e nos orientar nas escolhas de cursos, na nossa visualização de nós mesmos no futuro, dentro de uma carreira. Eu, perdido, do jeito que sempre fui, fiquei aliviado. O ensino médio acabando, eu ainda não fazia idéia do que fazer depois.

Respondi as perguntas do jeito mais honesto possível, afinal, não se pode brincar com o futuro. E o meu estava ali, na minha caneta, na cor preta de ponta 0.7.

Fui um dos últimos a entregar. Sentia em mim uma expectativa e uma curiosidade. Aquela mulher era, naquela hora, minha cigana, minha leitora de cartas de tarô. Era a única que saberia interpretar minhas respostas e minhas escolhas nas alternativas. A linha da vida não estava mais em minhas mãos. Estava naquela folha A4.

O resultado veio na semana seguinte. Recebi meu pacote, ansioso. Abri. Li.

“Forte inclinação para áreas exatas.” E uma lista de possíveis profissões que envolvessem matemática, física e química. Fiquei decepcionado, na minha carteira. Nada contra essas linhas, mas nunca foi meu forte, e nem de longe me instigavam o interesse. Os alunos envolta riam, se identificavam com suas folhas, faziam poses das profissões lidas. Eu não.

Diziam que era o destino quem nos escolhia, e eu pensava ‘mas que droga de destino mais sacana’.

Lembro que comecei a me dedicar mais nessas matérias, até porque se meu sustento viria dessas profissões, eu deveria ser bom. Memorizei as fórmulas, decorava os nomes bizarros, me propunha exercícios. Para mim era como tomar chá de boldo, tentando sentir o gosto bom daquilo. Não rolou. Minhas notas melhoraram, é verdade, mas e quanto ao resto da minha vida? Eu seria um apanhado de notas azuis em boletins brancos?

No fim do terceiro colegial resolvi romper com meu destino. O encarei e disse:

- Muito obrigado, mas eu tenho outros planos para minha vida, quer dizer, não sei o que quero ainda, mas não tem relação com suas escolhas para mim.

- Tem certeza? Prefere ficar largado? Olha quantas possibilidades eu tenho aqui.

- Pois é, mas você viu por você, nem sequer pediu minha opinião. Já foi logo jogando em mim seus planos, projetos. Eu preciso trilhar meus caminhos com meus próprios pés. Não posso deixar você me carregar assim, com essa passividade. Não quero provar que você está errado, quero apenas tocar em outras alternativas.

Ele relutou mais um pouco, mas no fim entendeu e me deixou ir. Foi um ‘quase’ provisório. Aquele tipo de coisa que, às vezes, surge por um tempo determinado para ser substituído depois. Poupou-me algumas recuperações e algumas conversas mais sérias com minha mãe. Foi necessário.

Eu tinha de ter rompido como fiz, e vasculhar outros caminhos por mim mesmo. Como perder o ônibus, de propósito, só para variar de passageiros e motorista. Como dizer bom dia, aleatoriamente, para sentir a reação de outras pessoas, e perceber que até desconhecidos respondem e sorriem... nem sempre. Como se arriscar em coisas que nunca fez, só para alegar que precisa ter o que contar na posteridade. Como descer em uma estação de trem que nunca fez parte do seu trajeto, só para ver que a vida pode ser mais ampla e há outras ruas, prédios e coisas que podem ser feitas por ali. Como dizer não a certezas que se mostram maravilhosas vestidas de dúvidas.

Não me tornei matemático, nem físico, nem químico, mas na minha equação e pelas minhas fórmulas e contas, o resultado ganhou um visto e um ‘muito bom’ da vida, ou destino, que aposto que me assiste de longe, rindo e dizendo ‘não é que ele estava certo?!’

Ellion Montino

4 comentários:

  1. ''Eu tinha de ter rompido como fiz, e vasculhar outros caminhos por mim mesmo.''


    Bom dia bem bem!
    Gostei mt, um beijo :)

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  2. "Muito obrigado, mas eu tenho outros planos para minha vida, quer dizer, não sei o que quero ainda, mas não tem relação com suas escolhas para mim." ^^



    Me identifiquei muuuuuuito com essa frase!

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  3. Uau... Não foi 100% mas me identifiquei 95% com o texto.

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  4. Eu preciso trilhar meus caminhos com meus próprios pés. Não posso deixar você me carregar assim, com essa passividade. Não quero provar que você está errado, quero apenas tocar em outras alternativas.



    Alternativas são sempre bem vindas '_'

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