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Pra não dizer que flores não falam - Último Ato

“Todo homem nasce livre e por toda parte está acorrentado”– Rousseau

- ... e foi isso o que aconteceu! – ele disse olhando sério para ela.

Era um homem bem vestido. Trajava um terno bem alinhado, azul marinho. Camiseta branca e uma gravata preta. Alto, um porte atlético. Dentes muito brancos. Os olhos bem escuros, um sorriso de frustração momentânea. Seu perfume era agradável.

- E onde estamos agora?

- Aqui é a ante-sala do seu quarto.

- E no caso você é mesmo a... a...

- Morte?

- Isso.

- Mas você é um homem... (e tão sedutor...) – isso ela apenas pensou.

- Obrigado pelo sedutor, hahaha... – Dália o olhou com espanto – Nada de foices ou capas pretas, caveiras, crucifixos. Isso foi invenção de vocês.

- ...! Isso é muito surreal. Não pode ser verdade. Portello me drogou. Você é um dos capangas. – Tentou levantar, mas não conseguiu.

Um enfermeiro vinha pelo corredor que dava naquela ante-sala. Deixou a luz apagada. Sentou numa cadeira do canto para tomar um comprimido que carregava no bolso.

- Ei, moço...! – Ela disse. – Moço!!! – conseguiu gesticular os braços.

- Ele não vai te ouvir e nem ver, Dália. Olhos e ouvidos humanos estão ajustados para ver outro tipo de freqüência.

- Do que você ta falando?

- Explico outra hora. Ele se chama Marcos. É seu enfermeiro.

- Meu enfermeiro?

- Ainda não notou que estamos num hospital, Dália?

- Mas eu não estou... morta?

- Infelizmente não. Você é difícil. Viveu me iludindo e brincando comigo. Tenho esperado pra te buscar, mas você sempre dá um jeito de me fazer esperar mais.

- Se você é a Morte e eu vejo você, mas não morri, então o que aconteceu??? Porque ele não pode me ver?

Marcos ingeriu uma pílula a mais. Levantou e caminhou até o quarto de Dália.
- Você não lembra de nada? – Morte se levantou e permaneceu parado, de costas para ela com as mãos dentro do bolso da calça.

- A última coisa que me lembro é de apontar uma arma para o Portello e de ver o... meu deus... o que aconteceu com o Eduardo?

Morte se virou sério. Estendeu a mão esquerda que continha um pequeno relógio de bolso dourado. Abriu a tampa.

- Quer lembrar?

- ... quero!

- Volte o ponteiro menor duas vezes.

Ela o fez. Morte agora estava sentado numa mureta, aplaudindo.

- A melhor parte está chegando, Dália. Reconhece a cena?

- Hahahaha... garoto? Que sorte a minha e que petulância a sua, hein. Não imaginei que iria te encontrar tão cedo. O que é? Dália fugiu? Hahahaha... ela é quente, não é, garoto? Não imaginei que ela fosse te contar onde vive e trabalha. Você a expulsou de casa e veio pedir desculpas?

- Você viu tudo isso acontecer e não fez nada? – Dália perguntou. Ela estava em pé ao lado de Morte. Seus gestos eram impacientes – VOCÊ NÃO FEZ NADA???

- Silêncio. Eu amo as tramas de vocês, o jeito como vocês se definham. Buscá-los é sempre uma inspiração. Eu não sou ruim, vocês que aprenderam a me dar um valor moral. Agora preste atenção.

- Eu não sei se consigo errar um tiro como você, viu. – engatilhou.

- Não, Portello!

- Você é mesmo encantadora, não acha, Dália? – Morte dizia em tom de quem pensa alto. Dália permaneceu calada. Levou uma das mãos a boca.

- Sabia que você voltaria para mim. O que temos é verdadeiro. E eu já te perdoei de tudo.

- Abaixa a arma, Portello.

- Sem caridade hoje, Rainha. Tô sabendo que ele te tratou mal e você lembra o que ele fez hoje...

- Eu não tinha planejado nada disso! Não queria envolver ninguém... – Dália falava como súplica. – O que o Eduardo está fazendo ali?

- É isso que torna tudo mais interessante, Dália. Vocês esquecem que tudo o que fazem funciona como um emaranhado de linhas. Vocês vivem se conectando com outras realidades e outras pessoas. Inserem e retiram personagens da própria história. Por isso meu trabalho nunca é monótono e por isso a vida nunca é certinha. Não é a vida que os surpreendem, são vocês que não se dão conta desse todo. Agora veja...ta chegando a minha parte predileta de todo fim...

- Vocês dois estão juntos nisso??? Pra cima de mim, Rainha? Depois de tudo o que fiz por você? E nossa história? Hahahaha... Garoto, eu não sei se acabo com você ou com ela primeiro. Quer escolher?

- É só abaixar a arma, Portello.

- Hahahahaha... Vocês estão dando a melhor noite da minha vida!

Portello apontava a arma para Eduardo. O capanga mirava na cabeça de Dália e Dália erguia lentamente a arma em direção a cabeça de Portello.

- Então, Portello, porque não dispensa seu gorila, deixa a menina em paz e a gente resolve isso só entre nós? Pode continuar armado, mas é bom não errar o tiro. – Eduardo disse com calma, as mãos ainda no bolso.

- Viu Dália. Ele é mesmo um cavalheiro. Pena que você é uma rodada. – abaixou a voz em tom de cochicho e disse: Ela é muito rodada rapaz.

- Portello, diz isso olhando na minha cara!!! Quero ouvir você dizer isso e todas as outras coisas que você adora dizer. Quero olhar essa sua cara nojenta uma última vez.

Portello riu, deu uma olhada para o capanga que entendeu o recado e apontou a arma para as costas de Eduardo.

- Um movimento em falso e você nem vai saber que morreu! – disse o tal gorila.

Eduardo ergueu os braços como quem se rende e sorria de sarcasmo. Uma viatura da polícia chegou. Ceará havia acionado e delatado, informando o incidente no bar e o destino do suspeito. Um dos PM´s saltou do carro com a arma em punho sem saber para quem apontar.

- Todo mundo parado!!! – Ordenou.

Portello encarava os olhos de Dália que apontava a arma para o seu rosto. Dentro daqueles olhos castanhos claros havia uma faísca que teimava em não apagar. Dentro daquele olhar de ressaca habitava uma insistência em acreditar numa esperança débil e melindrosa. Portello não conseguiu conter a gargalhada.

- Isso está ficando cada vez melhor, não acha sua puta nojen... – Portello foi interrompido por um disparo saído de mau jeito, mas que varou sua testa.

Mais dois disparos se ouviu: O capanga voltou a arma na direção de Dália e atirou e logo caiu atingido pelo disparo do policial. Dália estava no chão, de olhos abertos, mas vendo a vista escurecer. O tiro havia atingido uma parte de sua cabeça.

O movimento dentro da casa se voltou para fora. Mulheres e homens saíam desesperados. Aproveitando a deixa de pessoas movidas por seus medos atrapalhando o controle policial do local, Eduardo correu para o corpo de Dália, caído e desacordado, se agachou, pegou a arma do avô e correu de volta no sentido da casa onde havia mais gente e pôde sumir sem ter muito trabalho. Foi rápido e frio.

Margarida foi a última a sair da casa e a reconhecer o corpo da filha estendido na calçada. Ficou agachada, em choque, chorando um arrependimento tardio.

...

- Por isso você está aqui. Lembrou agora? – Perguntou Morte. Os dois agora estavam de volta nas cadeiras da ante-sala.

- Meu deus...!!! Mas eu ainda não entendi o que eu sou agora...

- Venha, eu vou te mostrar.

Morte levantou, estendeu a mão para Dália e a levantou da cadeira. Como um cavalheiro conduziu Dália até o quarto de braços dados. Dália viu sua mãe numa poltrona ao lado, dormindo debruçada na cama da filha. Dália estava entubada, fios se conectavam ao seu dedo e em parte do crânio.

- Você está em coma, Dália. Está viva e morta. Não posso te levar e não sei se você voltará ao corpo. – Morte sorriu um sorriso cínico e continuou – Odeio que me torturem assim.

- E agora? Eu estou presa aqui?

- Digamos que sim. A parte boa, Dália, é que agora eu tenho uma companhia.

- Eu não quero! Eu quero voltar...

- Agora decidiu viver?

- Me coloca de volta!!!

- Hmmmm... não! Primeiro que não posso, e segundo que mesmo se pudesse eu não o faria. Meu prazer não está em dar vida.

A porta do elevador abriu. Outro enfermeiro chegou. Entrou no quarto, cochichou algo com Marcos e colocou um envelope grosso, de tamanho A4 nas mãos dele. Marcos olhou, sentiu vontade de abrir, mas não podia. O pacote tinha uma destinatária. Ele colocou no balcão ao lado da cama de Dália.

- O que é aquilo? – Ela perguntou para Morte.

- Será mais interessante você ir ver do que eu te contar.

Dália se aproximou. No pacote estava escrito:

PRA NÃO DIZER QUE FLORES NÃO FALAM

A/C DÁLIA

ASS: EDUARDO

- Eu não consigo pegar!!! – disse ela tentando agarrar o pacote.

- Não me diga! Hahaha...

- Que raiva!!! O que é isso? O que tem dentro?

- Você não soube, mas Eduardo trabalha numa editora. Ele também escreve.

- E...?

- Ele leu o caderno que você deixou na casa. Transformou seu caderno e sua parede num livro. Digitou, editou e diagramou tudo. Será publicado em breve. No pacote contém o original com os documentos do registro.

Dália arregalou os olhos e permaneceu parada olhando o pacote. Sorriu. Queria sentir a textura do seu sonho concretizado. Deu uma risada tímida ao lembrar-se de uma das frases que escreveu na parede do quarto da mãe, quando tinha 15 anos, com lápis de escrever:

“sonhos parecem com nuvens, se formam, se movimentam, acumulam matéria, pingam, desaparecem, são concretos, existem, mas são impossíveis de segurar nas mãos.”

                 - Eu vou voltar pra vida, quando descobrir como se faz isso.


                - Espero que não! – Morte riu saindo do quarto.



Ellion Montino

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