Images

Queria ser nuvem, pairar

Newton, um nome estrangeiro que lhe rendeu boas provocações. Desde muito cedo aprendera que o "w" um dia entraria para o alfabeto do Português. Não sabia, entretanto, que isso demoraria tanto. Seu nome parecia clandestino. Por isso, em sua imaginação ele fazia parte deste clã: o clã-destino. O nome de um homem é o como ele é apresentado ao mundo. Ele sabia disso.
Nascido em uma cidade tão pobre e desarranjada, se sentia estrangeiro. Ainda criança, ganhou um apelido: Nito. Não se importou durante muitos anos com este chamamento vulgar. Aliás, sentia-se parte daquilo tudo, se livrava do "w". Corria pelas ruas, arranjava confusão com crianças da outra rua... Se perguntassem seu nome, dizia sempre: "Nito, por quê?!". Ninguém revidava.
Dizem que a educação deve vir de casa. O pai de Nito era pedagogo e pensava assim. Sua mãe era livre, não trabalhava, mas jamais ficava desocupada - educava seu filho, instruindo desde a convivência familiar à social. O garoto cresceu assim, recebendo a educação de que tanto se fala. Logo, descobriu que caráter e educação são coisas diferentes. Sabia se comportar, calar e não responder. Mas isso nunca significou bondade ou maldade para ele; era só educação.
Nito cresceu, adolesceu e quis ser Newton. Decidiu entender e aceitar a si. Apresentava-se como Newton, sorria quando escreviam "Nilton", corrigia docemente contando sobre Isaac Newton e sobre o "w" que não existia no alfabeto do Português. Ria de quase tudo. Já havia entendido que o presente virava memória, que o que se torna memorável modifica o caráter.
A vida, então, a cada dia, se tornava uma ânsia pelo imprevisível e pelo inesperado. Nito entendia, - desculpe, - Newton entendia que não seria possível forjar o caráter de um ser completamente exposto ao acaso. Suas decisões refletiam a educação que recebera, no entanto, sempre ficava muito evidente que ele era livre para mudar suas memórias no futuro. Negar princípios. Questioná-los, ao menos. Quando algo o surpreendia, pensava, antes de tudo, em como se lembraria daquilo no futuro. Um jeito interessante de viver.
Se nosso caráter é fruto da nossa memória, investigar a memória genética e histórica seria  libertador.  Recuperar a memória de seus antepassados parecia um caminho acertado. Então, percebera seu grande defeito de caráter, não tinha genealogia. Sua árvore genealógica era a mesma feita no jardim de infância, acabava nos avós; era tudo o que sabia. Não há documentos, seus avós foram escravos, imigrantes, índios, desconhecidos. O imprevisível se tornara o imemorável. Não sabendo de onde viera, entendeu que em seu corpo podia correr o sangue do herói ou do bandido; sangue azul ou "selvagem"... enfim, parecia livre para ser.
Mas seu nome era Newton, não Nito. Nome saxônico. Homem latino-americano. Sangue imemorável. Brasileiro. Percebeu-se ao mesmo tempo singular e plural. Como as nuvens. Nuvens são sempre únicas, têm aparências incrivelmente diferentes, mesmo sendo iguais. Entendeu. Somos como as nuvens, que pairam no ar. Umas se dissipam. Outras tornam-se densas. Algumas se agrupam e chovem. O vento leva. O tempo leva. São tantas, que não são inesquecíveis. Todos se lembram das grandes chuvas e não das nuvens. A memória não é sobre os homens, mas sobre o que chovem, suas ações.
Queria ser nuvem, pairar. Viver uma existência fugaz. Poder olhar tudo de cima, contemplar as paisagens e passar pela terra chovendo onde há secura. Se o caráter se faz com memórias, se não é possível prever o que será memória amanhã, a liberdade consiste em escolher ser efêmero. Já que, para muitos, não há genealogia. A identidade de Newton foi formada do vapor de chuvas passadas que molharam muitos e misturou-se ao sangue e ao suor de quem já foi nuvem.

Luiz Henrique F. Cunha é professor e escritor
tem um blog http://luizhenrich.wordpress.com
Seu livro novo tem um site: http://historiade50metros.com

0 comentários: