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DO TESTEMUNHO

Vou lhes contar minha história, senhores. Por favor, parem os risinhos.

Falo sério e com sobriedade, mas nem sempre foi assim. Hoje falo de um outro patamar, de um outro estado de espírito. Fui agraciado, alcançado por uma força maior. Ouço vossos rumores pelos becos, vejo seus olhares desconfiados. Compreendo-vos. Sei bem quem fui, ou melhor, acho que trago uma vaga lembrança.

Eu era um perdido, sujo, maltrapilho, bêbado. Perturbava-lhes a paz, o sono. Cheguei a levar bofetadas na cara por isso. É, eu não era muito bem visto, muito bem-vindo, querido, desejado, enfim. Eu lhes entendo. Mas que me importavam essas coisas? Que me importava à vida, senhores? Acreditavam mesmo que essas coisas me doíam? A minha dor era outra. A minha dor não era na carne, era na alma. Nenhum rasgo na pele ardia mais do que os meus latejos internos. Nenhum delírio causado por substancias lícitas e ilícitas me tiravam mais dos eixos do que a vontade da morte.

Vejo que prendi vossa atenção. O drama, a tragédia e a dor lhes causam curiosidade? Interesse? Vocês são criaturas interessantíssimas, senhores.

Não compreendem minha mudança? Não acreditam nela? Pois vejam, vocês estão diante de um milagre! O homem não está de todo perdido. Eu tive jeito. Fui liberto, mas estou longe de me ver livre. Já explico.

Calma. Porque vocês são tão ansiosos? Vou responder todas as questões. Quero que brindem comigo e por isso lhes dou minha história aos goles.

Naquele tempo nenhum trajeto, caminho ou estrada me fazia sentido, me davam alguma direção. A falta de norte e de destino nos tornam vagantes sem rumo, meus caros. Não saber aonde se quer chegar pode ser um perigo sutil à vida. Estampo na vossa cara minha condição, e não, não me envergonho dela. Assumo meus poços com heroísmo, eram meu patrimônio, algo que poderia chamar de meu, um bem muito bem apropriado por sinal, um lote que se mantinha longe de seus impostos, mas que não deixava de me cobrar o aluguel e o preço eram meus dias, meus sonhos, minhas vontades, meus desejos. Nunca atrasei um, senhores. Saudava minhas dívidas todas em dia, até que não pude mais pagar.

Sabem o que acontece nessas horas? Esse tipo de aluguel atrasa e os juros são altos, e dos meus olhos saíram então todo brilho. Já não tinha sonhos, desejos, vontades, brilho nos olhos. Não me restava mais nada, apenas à vida que insistia correr em mim, mesmo que arrastada e essa virou o meu penhor, com ela deixaria tudo pago.

Adoro vossa expressão de espanto. Ah, como gostaria que vocês vissem as vossas caras!

Iria quitar minha divida. Sou um homem honrado e não gosto de dever nada para ninguém, muito menos para mim. Iria suicidar-me.

Naquele dia levantei tarde, queria me conceder pelo menos alguns prazeres casuais antes de pedir para fechar a conta. Último banho quente, último pão, última conversa, última garrafa, última trepada, mal sucedida, confesso, mas...nem todo fim é completo e perfeito em si mesmo!

Saí cambaleando vos cumprimentando pelas ruas. Vossas zombarias foram meu último alento, minhas últimas palavras de conforto, os últimos gestos de carinho.

Meu destino não poderia ser outro se não a ponte e era para lá que eu me dirigia.

Foi ali, no ápice do latejo e da vergonha, na eminência da euforia e do fracasso, da ansiedade e do desejo mórbido que vi, enfim, a luz que me retirava das trevas que me tragavam.

Ali fui arrebatado de toda perdição, senhores. Minha salvação chegava para mudar completamente minha vida e meu rumo.

Minha salvação e redenção era ela cruzando meu caminho naquele instante. Olhos escuros, cabelo repartido ao meio, distinta, única. Passou por mim, evidentemente nem me notou e obviamente nem fazia idéia que o seu simples ato de caminhar naquela calçada, naquela noite, naquele momento, fez bombear mais forte meu coração distímico, jorrando mais fluxo de sangue em minhas veias e tirando de minha cabeça qualquer propósito de fim. Aliás, o quê mesmo eu estava fazendo ali? Claro, fui conduzido por uma força maior apenas para vê-la.

Acompanhei todo seu trajeto com meus olhos e com o movimento da minha cabeça. Em mim se resgatavam, naquele momento, os sonhos, as vontades e os desejos. Quem precisa de reformadores protestantes, de noventa e cinco teses, quando se têm um anjo cruzando seu caminho, senhores?

Eu não pularia mais. Naquele momento eu encontrava minha liberdade novamente e nela eu encontrava outro tipo de abismo para saltar e eu saltaria com gosto. Foi o que fiz, saltei. E no salto ela desfilava como deusa.

Ela me livrou de todo mal que eu pleiteava causar a mim mesmo e me fez livre para me prender a ela. Que prisão abençoada. “Benditas são vossas grades, madame!”  eu repetiria isso para mim por muito tempo, tinha certeza.

Eu fui salvo, senhores!

Minha vida mudou. Sei que vocês se recusam a acreditar, mas pessoas definem pessoas. Ela nem sequer me olhou e mesmo assim me fazia sentir uma necessidade de mudança quase que instantânea. Essa sensação e vontade se assemelhavam a um sentimento de desespero, um sentimento de urgência. Eu precisaria ser melhor para no mínimo saber seu nome. E ali na ponte eu morri para ser outro de mim mesmo.

Quem eu era? De onde eu vim? Nada disso importava mais.

Não tenho passado depois que a vi passar. Eu começo quando ela surge, ponto final.

E não me venham com seus santos, senhores!

Entre vós está minha redentora. Sei que nesse momento ela me ouve e me vê. Sei também que ela não faz idéia de que é dela que falo. Como saberia? Não fomos devidamente apresentados....

.....


Ele falava alto e em público numa espécie de praça. Ninguém lhe dava ouvidos. Ninguém prestava atenção. O consideravam louco e bêbado. Erguendo um copo vazio, fez um brinde e bebeu, deliciosamente, o vácuo, sorrindo com gosto depois de um belo gole.


Ellion Montino

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